Oi,
Tudo certo por aí? Esta carta te encontra em boa ocasião? A vida te tratou bem neste fim de semana? O pessoal finalmente largou mão daquele papo de dragon ball na tv globinho sendo interrompido pela notícia do ataque às torres gêmeas ou foi só por um capricho do destino algorítmico que esse assunto não apareceu por aqui hoje?
Nos últimos dias, a trilha sonora do Escritório do Carimbo alternou entre essa e essa. Nesta semana, tenho uns duzentos carimbos para fazer – e nem estou sendo hiperbólica, então é bem possível que em muitos momentos essa playlist esteja torando por aqui também. Na próxima eu conto mais sobre a gigantesca encomenda; agora, queria falar de um assunto que, para falar na língua do produtor de conteúdo contemporâneo, muita gente me pergunta o tempo todo: como é que se faz um carimbo.
Para isso, peço a licença de fazer uma digressão aqui e, sempre trabalhada na nostalgia, lembrar de um longínquo 2017, quando a gente achava que o Michel Miguel era a pior coisa que tinha acontecido na vida política deste país. Eu já tinha feito carimbos ex libris esculpindo à mão em borracha (um dia conto mais sobre isso), tinha visto essa loja de carimbos francesa e testava a recepção dessa ideia com as pessoas – “vou vender carimbos em que se lê foda-se” –, do mesmo jeito que eu falo de uma porção de ideias que seguem esperando concretização – “vou viajar até a cidade de Tucunduva para visitar o estúdio d’Os Atuais, localizado na Travessa Os Atuais, e depois escrever um relato meio gonzo sobre o pitoresco universo das bandinhas sulistas”. Calhou de o pessoal pilhar também, minha irmã emprestou o dinheiro para investir na máquina e, em fevereiro daquele ano, estava lá eu com uma máquina de carimbos em casa e zero ideia de como fazê-los.
No decorrer do texto, vai ficar mais perceptível uma das regras do fotopolímero (e da vida?): tudo que tem chance de dar errado pode, e vai, encontrar um jeito de dar errado. O bagulho é complexo. Até, por baixo, outubro ou novembro, eu ainda não tinha dominado direito a técnica de fazer carimbos, o que foi uma lição para a neurótica que vive dentro de mim e quer acertar sempre pra ganhar as estrelinhas todas logo de primeira. Mesmo agora, considerando que entendo o processo e todas as regras, ainda me estresso um monte – e isso fica aqui como um aviso para você que, ludibriado pelo meu glamour, fama internacional e sucesso estrondoso, quer entrar nessa de viver de carimbos (neste caso, um concursinho é a melhor alternativa para viver de carimbos da maneira mais eficiente). Vou tentar explicar um pouco melhor o processo, porque dele derivam algumas regras, restrições e boas práticas que servem muito na hora de encomendar, desenhar ou pensar nos seus carimbos.
Ah: estamos falando de fotopolímero
Tem vários jeitos de fazer um carimbo. No passado mais remoto, reza a lenda que a produção era feita a partir da vulcanização, uma coisa que me parece muito legal e queria muito ver acontecendo, mas não sei se ainda tem em algum lugar. O pessoal usava tipos móveis e clichês para compor a imagem do carimbo e fazer, com elas, um molde. Depois, nesse processo de vulcanização (tem algo a ver com misturar enxofre e meio que derreter as coisas, não entendo direito), a borracha entrava nesse molde e virava o carimbo. Tem um jeito mais novo agora, também, que é cavar uma placa de borracha usando aquelas máquinas de gravação a laser, mas é meio caro e aí você tem que gravar mensagem em copo de formatura pra compensar o investimento, então aqui na Buro a gente lida com a máquina intermediária, uma fotoprocessadora, e com a gravação usando luz UV. É dela que vamos falar agora.
Passo 1: Tem que ser negativo
Quando eu for dar uma palestra de coach motivacional carimbeira, vai ter uma parte muito especial em que, depois de tocar algum sucesso eurodance, vou incorporar uma expressão facial mais grave e séria para dizer que, na vida, assim como na produção de carimbos, coisas boas podem partir de algo negativo. E aí mostrar a imagem negativa do desenho do carimbo e me alimentar da expressão maravilhada das pessoas com a complexidade e o refinamento desta associação.
Mentira, jamais faria esse tipo de coisa com as pessoas (exceto a parte do eurodance, que faço com alguma frequência). Mas a ideia é essa: como a gravação é feita com luz, a imagem do carimbo precisa ser impressa em negativo – e tudo que estiver em branco ali é o que vai ficar gravado quando, abastecido de tinta, o carimbo der seu beijo no papel.
Por isso, a imagem do carimbo ainda segue uma lógica bem binária (outra possibilidade de associação e crítica pra minha palestra), em que só se consegue gravar uma cor sólida, sem meios tons (zero tons de cinza aqui, vai com seu chicote pra lá!). Isso significa que não dá pra fazer uma imagem com tons de cinza? Não, porque a gente é espertinho e usa outros efeitos gráficos, como a retícula e hachuras diversas, onde for necessário. É por isso também que costumamos pedir uma imagem em alta resolução, preferencialmente um arquivo vetorizado, que pode ser redimensionado sem correr o risco de pixelar – quanto mais nítido o desenho ali no negativo, mais nítida fica a imagem carimbada. A gente consegue tratar e modificar as imagens pra deixar elas nesse padrãozinho também, se for o caso.
Passo 2: Uma bisnaga com substância viscosa
O negativo da imagem é posicionado numa placa de vidro e, sobre ele, é colocado um plástico filme (pra facilitar a limpeza depois e permitir que o mesmo negativo seja usado para fazer quantos carimbos forem necessários). Depois, uma guarnição – tipo um EVA da altura escolhida para o carimbo, em geral se usa a de 3mm – é posicionada em torno da imagem de modo a fazer uma piscininha, onde é espalhado o fotopolímero.
Confesso que o fotopolímero ainda é um mistério pra mim. É uma substância viscosa que se assemelha a um gel e, quando exposta à luz UV, endurece (rs). Acho que é derivado de petróleo? Enfim, não faço muita ideia. Se alguém que manja de química quiser explicar, faço muito gosto.
Depois de colocar o polímero ali, a gente coloca mais um plástico que, depois, vai ser o fundo da borrachinha do carimbo e fecha o pastel com outra placa de vidro. Esse sanduichinho é colocado dentro da máquina de carimbos. É meio que muito plástico, né? Pois é, também não queria que fosse assim, mas ainda não encontrei alternativa. A meu favor, tem o fato de que o preço desses plásticos e guarnições simplesmente DOBROU de um ano pra cá (parabéns a todos os envolvidos) e eu sou meio pão dura no geral, então não tem muito desperdício de material e, no fim, o volume de plástico descartado é da ordem de uma sacolinha por quinzena. E fiz outros esforços de preservação ambiental, dos quais falarei logo mais.
Passo 3: A máquina e a confiança cega no tempo
A máquina de carimbos é do tamanho de um forninho, e é basicamente um forninho, então é uma comparação adequada. Ela é totalmente vedada, para que não entre luz lá dentro – afinal, apesar de ser mais sensível à luz UV, o fotopolímero é um material sensível a qualquer luz, especialmente a luz solar direta – e tem quatro lâmpadas UV (meio caras também, toda vez que queima alguma dá vontadinha de chorar). Aquele sanduíche de vidro, plástico, negativo e fotopolímero é colocado numa gaveta e mandado pra dentro da máquina, onde será feita a gravação. Primeiro, o que o pessoal chama tempo de piso, uns dez a vinte segundos pra formar uma base onde a imagem do carimbo vai se fixar com mais segurança (e com menos risco de, depois, arrancar uma letra ou pedaço da borracha, por exemplo).
Depois, a gente vira esse vidro e liga as lâmpadas de novo, agora num tempo que pode variar (normalmente, entre três a cinco minutos), e que depende um pouco do desenho que está sendo gravado. Aqui, é a parte em que você espuma de ódio. Isso porque, se uma imagem tiver partes muito pequenas/delicadas do desenho – linhas muito finas e espaçadas –, ela precisa ficar mais tempo em exposição pra garantir que endureça a borracha e grave certinho. Mas, se ficar tempo demais, a luz meio que foge pros lados e junta pedaços do carimbo (numa tendência que, no final, seria a de o negócio todo virar uma grande mancha). E não tem muito como saber se deu certo até tirar o plástico e conferir. Mas, uma vez que você tira a borracha, se algo não tiver saído – um pingo num i, por exemplo –, não dá mais para colocar de volta, tem que refazer o processo todo de colocar fotopolímero, plástico, tempo etc. O que é um saco. E a patroa nem me paga adicional de insalubridade pra sofrer desse jeito.
Enfim, por isso é que agora, só de olhar a imagem, já dá pra ter uma ideia do que precisa de reforço, por exemplo, ou se uma letra está muito pequena e periga ficar ilegível, essas coisas. Por outro lado, gosto muito de testar as possibilidades (sempre desafiando deus), então volta e meia quando vem uma imagem nova vou lá e faço, mesmo que seja pra descobrir que é impossível. De todo modo, tem que confiar no tempo mesmo.
Passo 4: Lavagem e cura
Considerando que a borracha saiu certinha, ela está bem dura (rs) nas partes onde a luz passou, mas tudo que fica no resto daquela piscininha pode ser reaproveitado – basta tirar e devolver ao frasco de fotopolímero (e, como o negócio é grudento, eu fico me sentindo muito aquele personagem estagiário do BoJack Horseman). Tirado o excesso de fotopolímero, é hora de lavar bem para a imagem revelada ficar nítida o suficiente para a cura.
Essa parte da lavagem, nos horrorosos manuais de como fazer carimbos, era sempre apresentada como “lave o carimbo numa pia, em água corrente etc.” e, nos primeiros anos, foi o que fiz. Ficava tudo bem grudento e dava pra ver que o polímero se espalhava todo por ali. Um dia, peguei um frasco diferente de polímero e vi que tinha um aviso: “pode ser danoso à vida aquática”. Me senti mal por ter ficado aquele tempo todo escorrendo o negócio pelo ralo e fui para a redução de danos: comprei uma bombona azul de 50 litros e, com um prego quente, fiz um furo na tampa de uma garrafinha de água, para usar o jatinho de água da garrafa ao invés da torneira. Isso facilitou muito o trabalho de lavagem e fez com que A Empresa passasse a economizar muita água. Nesses últimos três anos, ainda não enchi a bomba de cinquenta litros – e aquela nhaca de polímero está toda ali dentro, e não intoxicando as deliciosas tainhas florianopolitanas. Ainda não sei o que fazer com esse negócio a hora que encher, mas estou confiando que o universo vai fazer alguém da engenharia ambiental ler esta carta e me ajudar.
Depois de lavar bem, essa borracha volta para a máquina, agora imersa num líquido chamado “pós-ex", um químico que promove uma espécie de cura e que eu também não faço ideia do que seja. Isso leva mais uns cinco minutos, e deixa a borracha mais resistente.
Passo 5: Recorta e cola
Como esse processo de gravação é feito a partir do negativo, e a área útil da placa de vidro é de uns 15x20cm, dá para fazer carimbos grandões assim ou juntar vários carimbos num só negativo, para gravar tudo de uma vez e depois, recortar as borrachinhas e colar cada uma em sua respectiva base, que pode ser a de madeira ou a automática (ou qualquer outra coisa que você queira usar como base, a gente incentiva a liberdade na base).
A maior parte das nossas bases de madeira são feitas pelos Américo – pai e filho marceneiros, lá de Itaiópolis-SC –, reaproveitando a madeira de outros trabalhos, que seria descartada, para fazer bases de carimbo (e, por isso, elas são sempre de cores diferentes). Também usamos as bases automáticas da Trodat, que tem uma conversinha toda de carbono neutro (é uma grande corporação, tem filiais na Ásia, não dá pra pôr a mão no fogo mas, entre todas as alternativas, parece a mais idônea mesmo). É assim, então, que a magia acontece.
No meio disso tudo, tem muita dancinha na frente da máquina de carimbo quando tá tocando Djavan, choro na frente da máquina de carimbo, carimbos que dão certo de primeira e carimbos que dão errado pra depois darem certo, um processo artesanal cheio de som e fúria etc. Espero que cê tenha gostado de saber mais, mas escreve me contando o que achou também. Ou encaminha para alguém e espalha a alegria:
Beijo e uma boa semana por aí,
Marceli
Quase um curso (com ilustrações) digno de Instituto Universal Brasileiro
mestra carimbeira