Existem algumas imagens bem difundidas no imaginário coletivo – tipo o Keanu Reeves olhando números e letras verdes a caírem em cascata – que fizeram a gente associar tecnologia a chips e bits. Mas, no fim das contas, este conceito é muito mais abrangente e pode ser usado para se referir até a pedras, paus e poemas.
O fogo, as roupas, os carimbos, as enxadas, os computadores cuja CPU você podia chutar enquanto ouvia Linkin Park: tudo é tecnologia. É inegável, no entanto, que as tecnologias digitais (físicas ou etéreas) ocupam cada vez mais espaço não só no próprio conceito, mas também nas nossas vidas.
Mesmo que você decida abrir uma loja de carimbos (mas não decida, por favor; não preciso de concorrência agora), em pleno ano de 2023 de meu deus, não vai conseguir fazer detox digital ou usar menos o Instagram (e, olha, eu tentei). Mas dá para tentar ter uma relação mais saudável e decente com a tecnologia, e esta arqueologia de memórias digitais a que me proponho agora é uma tentativa de encontrar o que tinha de melhor (e de pior) em todo esse tempo olhando para telas:
1997 (ou 1998; por aí) – Windows 95, o primeiro compiuter
Minha irmã mais velha começava a faculdade e a mãe investiu uma grana porque ouviu que o computador era essencial para os estudos. Aquele primeiro, com Windows 95, foi trazido para o sítio pelo único técnico em informática da cidade e tinha toda uma liturgia envolvendo a máquina: capinhas de plástico na tela (de tubo), na CPU e no teclado, a ordem de apertar os botões para ligar e desligar, a distância que tinha que manter quando não tivesse usando para não bater em nada, reverência mesmo. Podia mexer, mas não podia mexer muito, sob pena de deletar alguma coisa importante e quebrar tudo.
Minhas irmãs começaram a digitar e formatar os trabalhos acadêmicos para elas e também para os colegas. Do lado do PC, sempre tinha uma pilha de manuscritos a serem adaptados para a ABNT. Ali talvez tenha sido plantada a semente da revisora de texto que sou hoje em dia (adorava, e sigo adorando, ver textos bem formatados). Lembro também de um CD-rom que veio junto com o computador e chamava “Sintesoft Creative”, com uma série de jogos. O que eu mais gostava era um em que você escolhia o personagem (o leão/o urso/etc.), a ação (pinta/canta), o lugar (na praia/no circo) e o tempo (durante o dia/durante a noite). Aí, uma mulher de sotaque espanhol carregadíssimo lia a frase completa com pausas (O urso - brinca - no quarto - durante o dia) e a animação ficava rodando com uma música feliz. Passei muitas horas da minha vida fazendo análise combinatória narrativa ali.
Menção honrosa também para o CD-rom do Almanaque Abril 98, que tinha um vídeo do Michael Jackson no Pelourinho (eles ligavam pra gente) e o Paralamas do Sucesso cantando ‘Uma brasileira’ com o Djavan, ambos assistidos aproximadamente um bilhão de vezes porque era o que tinha.
Primeira metade dos anos 2000: Windows 98
Nessa fase, o medo de estragar o computador diminuiu consideravelmente e comecei a mexer nele tentando entender como funcionava. A grande contribuição do compiuter para minha vida neste período foi a possibilidade de instalar emuladores de videogame, já que nunca tinha tido um console (sigo, triste, sem nunca ter tido um). Usei muito o ZSNES, zerei Super Mario World e gostava de jogar também o Super Mario World 2: Yoshi's Island (um jogo fofo). Também comprei muitas revistas + CD-rom daquelas com centenas de jogos em flash.
Aí também foi quando chegou a internet discada com todas as lembranças clichês de internet discada: barulho de modem, a mãe brava porque nenhuma tia podia ligar no sábado à tarde etc. Com frequência, tinha algum fecha-pau entre eu e minha irmã do meio porque uma queria usar o computador enquanto a outra estava usando. Ela entrava no Bate-papo UOL e fazia webamigos. Eu passava todo o tempo online lendo o site da Turma da Mônica ou jogando O Labirinto do Dexter no site do Cartoon Network. Quando ficava offline, lia revistas Atrevida da década de 90 (herança das irmãs) ou brincava na rua com a piazada. Lembro do dia em que minha irmã chegou da faculdade dizendo que uma amiga dela conhecia um cara que conseguia gravar a música que você quisesse num CD. Ela fez uma lista, o cara gravou e imprimiu num jato de tinta uma capa que era um clip-art de uma praia com palmeiras (deve ter ido um caminhão de tinta naquilo) escrito “Minhas Músicas Preferidas”.
Segunda metade dos anos 2000: Windows XP
A disputa pelo computador com minha irmã continuou – um webamigo virou webnamorado e o resto é história (dois sobrinhos lindos e queridos que são consequência indireta de uma sala por cidades do Bate-papo UOL). Eu também comecei a fazer webamigos, especialmente na comunidade Cabeludos Comandam do Orkut – no ano passado, inclusive, enquanto vendia carimbos numa feira em SP, reconheci dois caras que participavam do fórum e devo tê-los assustado com a empolgação que senti pelo full circle todo. Ser adolescente metaleira de cidade pequena teria sido muito mais difícil se não fossem o Soulseek e o portal Whiplash, que, como muitos metaleiros, envelheceu meio mal. Uma das melhores memórias dessa época é a de instalar o Winamp e um desses contatos de MSN enviar o arquivo de Roads, do Portishead, para a minha irmã. Até que eu descolasse uns cds de mp3, essa era a única música que tinha no drive e devo tê-la ouvido em loop algumas dezenas de vezes. Não fosse a internet, não sei se uma menina com seus 13 anos, morando em Itaiópolis, interior de SC, ouviria Portishead em loop por duas semanas.
Nessa época, perdi totalmente o medo de estragar o computador e passei a personalizá-lo de todas as maneiras. Foi, talvez, o período mais personalizável dos softwares e programas – desde o sistema operacional, que permitia mudar os esquemas de cores e ícones, até programas como o próprio Winamp, que tinham as skins mais insanas. Quis chegar até o ponto de formatar meu próprio PC, mas não fui tão longe.
Primeira metade dos anos 2010: smartphone e o início do fim
Comecei a faculdade em 2009 ainda com um dumbphone no bolso – trinquei a tela dele, inclusive, escorregando de bunda na escada do DCE durante uma festinha. Fiz uma licenciatura (Letras) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e virei early adopter de um monte de coisa graças às disciplinas ‘Tecnologia e sociedade’ e ‘Educação e tecnologia’. Não estou brincando: uma das tarefas da faculdade foi fazer uma conta no Facebook. Aprendemos também a usar o Google Docs e o Google Reader (saudades eternas), e embora não entendesse direito várias das coisas que o professor falava (uns papos de código aberto e liberdade online), tem coisas que seguem fazendo muito sentido.
As redes começaram servindo para saber quem ia à festinha, ganharam centralidade, perderam centralidade, o Facebook viveu bem e morreu rápido, o Instagram passou por todo aquele processo de harmonização facial e segue vivão e vivendo (embora a gente agora esteja tentando cortar os cabos dele o tempo todo). Nos últimos dois semestres da faculdade, começou a ter rede de wifi liberada e eu honestamente não lembro mais de nada do que ouvi em sala de aula. Misericórdia dos professores tentando falar qualquer coisa atualmente, deve ser difícil demais.
Segunda metade dos anos 2010: o começo de um novo começo
Recém-formada, comecei a trabalhar com escrita e produção de conteúdo para a web em uma startup de ecommerce. Isso envolveu pesquisar exaustivamente todas as notícias sobre tecnologia, startups e quetais. Significa que eu escrevi um post sobre a menina do vale Bel Pesce? Significa. Não sei se levava jeito para a coisa, porque logo que saí o blog foi todo reformulado para uma escrita mais SEO-friendly, mas tive momentos muito bons, como o de escrever para o blog de um sex shop nos idos de 2015, o que envolvia uma pesquisa divertidíssima.
Trabalhar no Matilha me fez conhecer pessoas incríveis, aprender um pouquinho de programação (o suficiente para desenrolar o site da Burocrata) e virar usuária de Mac (desde então juntando dinheiro para poder trocar de laptoc). É talvez nesse período que dá também para fazer a gênese do estado de ansiedade quase constante que me acompanha até hoje. Muita comparação com pessoas mais bem-sucedidas do Instagram, muita referência linda e maravilhosa do Pinterest que eu não conseguia transformar em nada porque muito tempo rolando a timeline do Twitter (essa parte, pelo menos, me divertiu um tanto).
E agora?
Estamos todos afundados até as orelhas nisso aqui, né? Não consigo me imaginar fora da internet – sem ela, não teria enviado carimbos personalizados para lugares como a capital do Acre, Rio Branco; não teria assistido metade dos filmes que vi; não teria ouvido dez por cento das músicas que ouvi. Não teria conhecido pessoas maravilhosas, não teria me apaixonado nem teria meu coração partido tantas vezes.
Puxando essas lembranças todas, sinto muita falta de quando a web tinha um papel menos central, ou ao menos um pouco mais coadjuvante, no dia a dia – especialmente porque não tinha notificação pipocando o tempo todo. Dava para escolher quando a gente queria entrar ali, sem essas chamadas todas, sem a urgência em que tudo e nada é urgente.
Ironicamente, a falta de notificações é uma das razões por trás do aparente flop do Fórum da Burocrata, uma tentativa de estabelecer um espaço digital de encontro menos ansioso e sem propagandas invasivas. Parece que o negócio não pegou muita tração e fico pensando se não é porque ele não fica te avisando o tempo todo que está na hora de ir lá postar.
De todo modo, o fórum segue ali, um pouco porque me pareceu uma excelente piada – mais uma tecnologia obsoleta nos anos 2020 fazendo companhia à ideia de jerico de vender carimbos –, um pouco porque é uma espécie de manifesto. Talvez todo mundo esteja mais acostumado com as polêmicas do dia do Twitter mesmo (me incluo nessa), e então esse espaço fica ali como uma lan house de cidade de praia, meio abandonado, um cara esquisito vendo sabe deus o quê num computador ali no canto, um doido falando sozinho na rua, pombos bicando migalha de pão na calçada enquanto o pessoal treina robôs pra chutarem a cabeça das pessoas e alguém pode pegar seu celular e, em quinze minutos, fazer três empréstimos consignados em seu nome.
Vejo meus sobrinhos escolhendo vídeos do Youtube para assistir e sou tomada da mesma incompreensão que minha mãe devia sentir naqueles sábados quando queria ligar para as parentes. Essas nossas relações contemporâneas com a tecnologia talvez sejam um caso clássico de as abóboras se ajeitarem no andar da carroça (mas a carroça está correndo a 240km/h). Aí, por sorte, temos o Manual do Usuário, uma publicação sobre tecnologia que está tentando saltar pra dentro da carroça e catalogar as abóboras todas (com um pessimismo pra lá de realista). É uma das boas parcerias que firmamos, com um kit de carimbos que inclui desde um ‘Confidencial’, para servir como a versão digital do ‘Top Secret’, até o ‘Carimbo de Proteção de Dados’, para tentar colocar as informações sensíveis da nossa vida a salvo dos olhares alheios (torcendo para que isso seja possível).
Confere lá na loja virtual, mostra pra alguém que você acha que ia curtir, considere fazer uma compra.
E por aí, quais tecnologias mais te marcaram? Alguma dessas memórias tocou seu coração? Me conta.
Um web-abraço e até a próxima,
Marceli
gostei muito do texto!
eu "frequentei" muito fórum ali pelos idos de 2003-07. eu costumava entrar num da nintendo, pq eu tinha um amigo viciado em videogame. porém, eu só ficava na parte "off-topic", que ironicamente se chamava Boteco (ironicamente pq só tinha adolescente e era virtual, mas a parte de falar besteira era igual), pois eu nunca tive um videogame, assim como você kkk eu cheguei a conhecer gente do fórum pessoalmente e mantenho contato com um amigo até hoje. curiosamente a gente se aproximou pq ouvíamos umas coisas obscuras.
enfim, gostei do negócio de carimbo. quando eu era criança já carimbei muita carta ajudando minha mãe no correio (ela tinha uma franquia dos correios). mas era um carimbo um pouco diferente desses que vc vende (eu me lembro de ser pesado).
Crônica adorável.