Olá, amigo da firma!
Espero que esta Burocarta te encontre com boa saúde, relaxado e podendo ler todos os emails que se acumularam na caixa de entrada durante a semana.
O mais provável é que você não tenha percebido (o que é próprio de nossos tempos), mas talvez você tenha percebido. Que a última Burocarta foi o balanço anual de 2023, no último dia do último ano. Que, depois disso, a Burocrata existiu digitalmente por um ou outro story e, desde o último novembro, só apareci há pouco com notícias monstruosas (aliás, cê viu? esse que é o kit mais divertido de todos os tempos?). Talvez você tenha notado que estou menos atenta, sempre de saída, meio negligente, que não digo que te amo com a mesma frequência…
A verdade é que, nestes últimos meses, estou vivendo uma vida dupla. Não é nada fácil de confessar: assim como se dá na talaricagem, na furação e olho, nos lances com regra muito frouxa e na não monogamia, meu tempo esteve dividido entre duas grandes paixões. Uma é a desses sete anos em união estável com a indústria vital dos carimbos. Outra, também séria e oficial, é minha ex, que mandou um oi sumida. Papo vai, papo vem – a carne é fraca, você sabe –, acabei me envolvendo novamente com a vida acadêmica e o lance tá ficando sério.
Vou te poupar dos detalhes mais pessoais e sórdidos, mas o flerte é longo e, desde a gloriosa graduação em Letras em 2013 na UTFPR, envolveu outras três tentativas de penetrar na pós-graduação, todas as três falhadas em algum nível (envolvendo passar e não conseguir cursar, passar e não conseguir pagar ou sequer passar). Agora, tudo aconteceu mais naturalmente e virei mestranda em Literatura na UFSC, vivendo intensamente até as pequenas emoções como a de ter batata palha no bandejão do RU quando chega a minha vez. É claro que a bigamia tem um preço e, se eu sofri por muito menos na vida, não é absurdo aos meus padrões estar em crise por achar que não dou conta das duas relações.
Essa semana, por exemplo, tive um leve faniquito quando precisei avisar alguns clientes que o prazo de envio dado na confirmação do pedido (cálculo este que já fica fora da realidade porque envolve minha fantasia de ser onipotente e sobre-humana) teria que ser estendido um pouco, porque rolou um seminário sobre Guimarães Rosa de segunda a quinta e não consegui estar no auditório do CCE e no ateliê ao mesmo tempo. Junto com isso, teve o fato de o fotopolímero se comportar muito mal no frio (entendo ele, eu também) e várias tentativas de gravar os carimbos darem errado, implicando em um retrabalho que toma mais tempo, e de minha impressora estar no conserto desde fevereiro, enfim, um grande rebosteio que atrasou tudo. A participação na feira Motim do começo do mês, que foi maravilhosa (embora eu tenha tido que cabular aula), acabou com o estoque de carimbos que tinha aqui e não me deu tempo de repor tudo (porque, bem, aí eu tive que ir à aula).
Mas, tirando o coração dividido e alguma confusão enquanto me colocava no espaço mental necessário para um ou outro mundo, foi uma semana boa demais. Vendi carimbos, fiz desenhos que as pessoas gostaram e tive ideias para outros tantos carimbos enquanto ouvia os noias da literatura falarem sobre o rio que há em Riobaldo, ou sobre o demo estar literalmente no meio do redemoinho ou os tantos travessões que indicam a travessia. Nonada, aquela coisa toda. No fim, a experiência acadêmica tem tido um pouco do que já sinto em todas as feiras gráficas que frequento: a sensação de encontrar a minha turma, gente que acha muito divertido falar de métodos de impressão ou de livros, textos e conceitos.
A culpa, então, talvez não tenha nada a ver com esses dois ambientes, mas esteja mais relacionada a uma terceira tarefa: não postar o suficiente ou não dar respostas imediatas ou não fazer sucesso na rede social. E, aí, caímos um pouco mais no buraco do século vinte e um, com a internet ficando cada vez mais impraticável e sujeita a fórmulas muito específicas para o sucesso. Nesse ponto eu também não conto novidade nenhuma; mais gente já escreveu sobre isso (e postou nas redes sociais, claro), aqui mesmo cê já leu as minhas memórias digitais (que, inclusive, foram referenciadas em outras memórias digitais), talvez seja um traço geracional essa ressaca forte de ter tido uma vida tão boa e cheia de possibilidades no computador para agora ser escravo do retângulo que vive em nossos bolsos. Nas feiras – e nas trocas de email, e nas idas até o correio –, tudo faz mais sentido, porque há conexão com pessoas que gostam / usam / usaram / um dia passaram perto de um carimbo. Aí, eu lembro por que estou fazendo isso: uma mensagem na garrafa para encontrar minha turma. Mas ter que fazer uma foto ou vídeo para postar na rede social, já sofrendo por antecipação, depois postar e ficar viciada nos numerozinhos que aparecem no retângulo e que devem indicar que as pessoas me amam para sempre, tudo isso é insalubre e tem me deixado numa ressaca violenta (com pitadas de estresse pós-traumático). A ressaca toda, no entanto, não me livrou da vergonha que foi perceber, durante uma aula, que passar três horas sem olhar o celular estava sendo uma tarefa mais difícil do que eu esperava.
A lógica das redes é essa, a internet tornou-se isso e a constatação fatalista, embora seja um tipo de alento, pode acabar virando performance que alimenta essa própria lógica. Pensar isso tudo, não no sentido mais ludista (uma pena, porque eu tenho muita vontade de quebrar de pau alguma máquina), mas procurando alternativas, já é parte do que eu fazia com a Burocrata, ficou mais sério com a pesquisa e pode ser útil nesse clima de fim de mundo. Volto para a universidade neste que talvez seja o momento menos glorioso dela – a estrutura física está combalida pelos anos de gestão política negligente e pelo golpe da pandemia, que deixou todo mundo atarantado, os retângulos no bolso também parecem afetar todo mundo ali, sem contar com a velha competitividade, as disputas de ego e a lógica quantitativa que me fizeram querer sair correndo logo depois da graduação. Mas estudar é muito bom e conhecer outras formas de enxergar o mundo fora da cosmovisão branca europeia colonizadora é confortante (ainda que possa me tornar só o violinista do Titanic, tocando musiquinha enquanto tudo afunda). Tem uma grande ironia nisso de, em um primeiro momento, a internet ter sido uma janela para toda a quantidade de mundo que existia no mundo e, agora, ela estar se tornando um mundo estreito, inescapável e cheio de anúncios.
Não quero que isso se torne um manifesto (nem toda crítica ou elaboração precisa virar um manifesto e é de se duvidar quando tudo é colocado como alguma forma de resistência) mas, de alguma forma, voltar a pensar em algumas tiurias me fez perceber algo que já estava diante de mim. Há sete anos que essa empresa quixotesca coloca carimbos em cima da mesa e tenta convencer as pessoas de que, sim, é analógico, é coisa do passado, é coisa do trabalho, mas ao mesmo tempo pode ser muito divertido. O que queria te contar, nessa carta, é que vou continuar atravessada por todos estes afetos, mas largar um pouco a mão do webnamoro, fazendo parecer que é proposital o fato de não ter talento ou saco para virar influencer nas redes. A ideia é seguir num tempo específico, mais lento e possivelmente sendo atropelada pelos algoritmos todos, mas estando mais nas feiras e aqui no email do que nas outras redes. Se eu sumir um pouquinho, você promete que não me esquece?
Um abraço e até a próxima,
Marceli